Para concluir…

“Bom dia, sou estudante no segundo ano de mestrado de psicologia e procuro um estágio.”

“Não temos vagas pra estágios no segundo ano de mestrado” ou “Não aceitamos estudantes de segundo ano” foram das respostas mais comuns com as quais me deparei na busca pra um estágio de 400 horas de duração pra conclusão do mestrado, em maio do ano passado. Até que consigo enviar um currículo. E outro, e mais um terceiro. Três entrevistas, selecionada pra dois lugares, (sendo que no terceiro eu deveria entrar em contato pois o psicólogo poderia aceitar duas estagiárias, mas acabei deixando de lado), um deles um grande hospital em Marseille, o outro num dos setores do hospital psiquiátrico de Aix, mas cujo serviço fica em outra cidade. Escolhi o último. A entrevista, eu fiz exatamente depois de ter visitado a gruta de Maria Madalena, visita que falei neste post.

O trabalho, em psiquiatria infantil, me encheu de perguntas e anseios, mas cada dia de estágio era um dia de descobertas riquíssimas. As 400 horas obrigatórias viaram 600 horas quando me pediram pra extender minha permanência até o fim de junho, pra que eu pudesse participar do encerramento dos grupos aos quais observei e participei. Eu não via o dia passar. Minhas sextas feiras eram “livres”, mas eu tinha reuniões com minha supervisora e aos poucos se desenharam a monografia de pesquisa e o relatório de estágio, cada um com seu tema saído da minha experiência em estágio. Porque, pra validar cada ano do mestrado, tivemos de redigir uma monografia pra cada ano e um relatório igualmente pra cada ano. Mas no segundo ano, o ano decisivo quando o título de psicólogo nos é conferido, o relatório de estágio também é defendido, desta vez com a presença do supervisor de campo no júri, além de dois professores com quem trabalhamos ao longo do ano.

O mais difícil do trabalho não foi encontrar a psicose infantil ou o autismo. Não foram as tensões nas reuniões, nem as dificuldades encontradas pela equipe. Minha integração nesta, aliás, se deu de forma quase natural, e o fato de eu ser estrangeira não foi questionado, nem evocado como dificuldade, ao contrário. Mas a parte escrita era o que eu mais temia. Confrontar a demanda universitária, uma última vez, uma decisiva confrontação. Escrever em francês me foi difícil, por vezes doloroso. Mas escrevi. Relatar minha clínica foi um exercício complicado, mas ao mesmo tempo prazeroso. Eu escrevi pelo paciente escolhido pro estudo de caso, mas também pra equipe. Porque meu lugar enquanto estagiária é efêmero, e nada mais justo tirar proveito desse exercício universitário pra dar um retorno à equipe com quem trabalhei. Tarde da noite era quando eu encontrava minhas palavras, e quando pude dar forma ao conteúdo que tomou conta de mim ao longo desse ano.

Na manhã deste 25 de junho de 2013, eu defendi minha prática clínica. As palavras sairam meio engasgadas por vezes, na hora H fui dominada por uma ansiedade crescente que me apertava o peito. Meia hora depois, eu recebia meu título de psicóloga. Faltava a monografia de pesquisa a ser defendida, essa que foi a mais difícil das tarefas que tive, porque foi a de maior complexidade pra ganhar forma. Igualmente defendida. De repente, os professores viraram colegas. A última barreira caiu. E com ela, as lágrimas que eu segurei ao longo desse ano (incrivelmente, quem me conhece sabe o quanto sou chorona).
Por que eu me dei todo esse trabalho de validar um diploma, enquanto poderia simplesmente ter me reorientado por aqui? Por que atravessar todo o estresse de uma formação puxada, sabendo das dificuldades às quais me confrontaria depois? Pelo mesmo motivo que me levou a escolher essa profissão: as pessoas. Foi difícil? Extremamente. Mas todos os meus referenciais mudaram depois que encontrei as crianças em psiquiatria. Foi à elas que agradeci, pessoalmente, no dia mais difícil do meu estágio: o último dia. A vida de estudante com suas exigências ficou pra trás, nos muros do campus da faculdade, em Marseille. Os mestres viraram colegas ao assinarem os papéis que conferem o título. A formação, essa, é vitalícia. E os mestres, desta vez, serão os pacientes.

19 Responses

  1. Gustavo Belli

    Show Natalia!!

    Parabéns, são sacrifícios, quedas e depois levantar que nos faz crescer e ver que valeu a pena.

    Sucesso agora e muita força para continuar este duro e gratificante trabalho.

    @GusBelli

    • Daiane Coelho

      Oi Natália, eu sei que este post é bem antigo mas gostaria de perguntar algo que ainda não achei resposta. Pelas postagens, eu sei que vc trabalhou como psicóloga infantil por alguns anos e agora se dedica à fotografia.
      Eu moro na Nova Zelândia, qualifiquei no Brasil como psicóloga com especialização em Saúde Mental. 7 anos ao todo de estudos e estágios. Na Nova Zelândia eu comecei a trabalhar como counsellor. Daqui uns 2 anos eu e meu parceiro francês vamos tentar a vida na França.
      Aqui a psicologia é bem engessada, bem orientada ao diagnóstico e terapias cognitivo comportamental. Aí na França tb é assim?
      O que te fez mudar pra fotografia?

      • Natalia Itabayana

        Ei Daiane!
        Aqui o exercício de psicologia é mais livre, as vagas são direcionadas pras diferentes especialidades (clínica, com ênfase em TCC ou psicanálise dependendo da orientação de trabalho da instituição, psicologia do trabalho, neuropsicologia, psicologia escolar e por aí vai). Me especializei em psicopatologia clínica e psicanálise e cliniquei em consultório privado e também em instituição (hospital psiquiátrico, serviço ambulatorial). Trabalhei em dois hospitais diferentes ao longo desses 6 anos em que exerci aqui, mas o serviço era o mesmo: atendimento clínico, animação de grupos terapêuticos. O projeto de trabalhar com fotografia já era antigo, anterior à minha mudança pra cá, e durante meu último emprego senti que tinha encerrado o ciclo e não tinha mais desejo em trabalhar com psicologia. Recusei a extensão de contrato que propuseram pra me dedicar ao projeto de trabalhar com fotografia.

        • Daiane Coelho

          Obrigada pela resposta, Natália. Acho que te perguntei sobre a tua mudança pra fotografia e também do trabalho psi na França porque eu tô me antecipando que eu posso me frustrar com a psicologia na França como me frustro com a psi na Nova Zelândia. Daí eu me pergunto: por que atravessar esse ciclo de fogo que deve ser um mestrado noutra língua se a prática da psi talvez nem seja aquela que conheço lá do Brasil. Vc entende que a psicologia francesa e a brasileira tem mais semelhanças que antagonismos? Um abraço fraterno, Daiane.

  2. Julia Machado

    Parabéns, Natti! Adorei seu texto. Que experiências incríveis! Admirável sua atitude. Que você colha os frutos, um a um… E que sejam bem saborosos. Beijos, Júlia

  3. Luciana

    Parabéns Natália!! Orgulho de você!!! Sei o quanto é difícil defender uma tese em nossa língua, imagino em outra!! Grande conquista, merecida!! Imaginei cada passo seu lendo seu blog!! Que exemplo! Minhas mais sinceras congratulações!!!

  4. Natalia Itabayana Junqueira de Mattos

    Obrigada, Julinha!
    A sensação que tenho é de que o tempo voou nesses dois anos, mas quando paro pra pensar em cada dia de estagio, cada hora dedicada a entender teoria, a escrever e trabalhar os assuntos vistos, tenho impressão de que o tempo foi justo. Foi uma experiência incrivel mesmo!
    Beijos!

  5. Raquel

    Oi Natalia!

    A gente conversou sobre os trâmites pra fazer um mestrado na França um tempo atrás. Eu ainda estou aqui, super longe desse objetivo…. Mas entrar aqui hoje e ler seu relato me deixou feliz! Bom demais ver gente (gente como a gente, rs!) conquistando as coisas que a gente sabe como é querer conquistar. Imagino o quanto tenha sido dificil. E voce foi realmente muito guerreira!

    Meus parabens! Todo sucesso e felicidade na carreira! 🙂

    Abraços!

  6. Natalia Itabayana Junqueira de Mattos

    Oi Raquel!

    Espero que você possa concretizar em breve seu objetivo. Hoje, o estresse passado, parece que o tempo voou, e que os dois anos passaram rapido. No fim, o mais dificil é realmente a despedida dos pacientes e das equipes com quem trabalhei, foi um ano muito intenso!

    Muito obrigada!

  7. Visit: www.isismarques.com

    Oi, Natalia! Parabéns por ter conquistado seu mestrado! Vejo que ja faz quase 2 anos, mas é muito bom conhecer historias de quem conseguiu continuar os estudos aqui na França! =)
    Abraços

  8. Eloisa

    Oi Natália, estou agora em Aix com meu esposo e filha. Enquanto eles descansam estava lendo mais uma vez teu blog e estou adorando.. Parabéns por chegar aqui falando somente três palavras e concluir um mestrado. Somente pessoas especiais conseguem estas façanhas. Estamos adorando Aix. Queremos voltar em outra época para apreciar as campos de lavanda. Mais uma vez, parabéns. Eloisa, Fernando e Isabela – de Porto Alegre/RS.

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