Sobre cruzar uma linha de chegada e ultrapassar os próprios limites

postado em: Corrida, Vida na França | 3

No final da corrida, os participantes que completam
a meia maratona ganham uma garrafa
de vinho da região do Luberon
Distância total do treino, dia 1 : 2,4km, alternando corrida e caminhada. Vou morrer no fim dos primeiros 600m.

Distância total do treino, dia 4 : 4km de corrida. Certeza que não chego nem no fim do km 1. 
Assim foi minha primeira semana de treino de corrida, uma planilha montada pelo primo do Bernardo, educador físico e grande amigo, 4 anos atrás, antes de eu embarcar meus tênis definitivamente pra Europa. Há mais de 4 anos, deixei de frequentar as salas de academia e suas esteiras e aparelhos, e fui pras ruas treinar. Tudo de que precisava eram um par de tênis, roupas de ginástica e um local pros treinos.
Na época, estávamos em Vila Velha, e o treino acontecia na beira-mar, seguido de mergulho pra refrescar, depois que o sol já tinha puxado o carro mesmo. Durante dois meses, essa era minha rotina. Até me inscrevi numa etapa do Circuito das Estações, mas viajamos três dias antes, e só trouxe a camiseta, nunca participei da tal corrida. Mas continuei correndo por aqui, com temperaturas baixas, altas, debaixo de sol ou até mesmo com chuva. Quando tive o acidente no esqui, o choro não era de dor, mas pela tomada de consciência de tudo aquilo que eu poderia ter de abrir mão caso tivesse rompido os ligamentos do joelho : esqui e corrida. Não necessariamente nesta ordem.

O ortopedista recomendou 6 meses sem correr. Indicou fisioterapia e bicicleta. Eu ia de bicicleta pra fisioterapia, pra faculdade, pra padaria, pra lugar nenhum. Pedalava sem destino. Queria meu joelho direito, não precisaria de cirurgia e, caso ele dissesse da necessidade da mesma, não me submeteria, sabendo que ligamento, uma vez lesionado, já era, cirurgia não conserta. O jeito era fortalecer toda a musculatura da perna, pra estabilizar o joelho e forçar pouco os ligamentos lesionados. Há quase três anos, não me assento mais na postura de lótus. O menisco dói. Falta de sorte absurda pra quem nasceu com as pernas tortas e, aos 2 anos de idade, teve como resposta de um ortopedista : “A cirurgia é simples, vamos serrar os ossos da perninha dela, imobilizar durante X dias, e fica tudo no lugar”. Pra minha sorte, minha mãe tinha conhecimentos de anatomia humana suficientes, além de um bom senso sem medidas, pra não autorizar o procedimento descabido. Usei botas ortopédicas. Ganhei apelido de Mané Garrincha no colégio por causa das pernas tortas. Foi aos 23 anos, quando comecei as aulas de balé clássico, que as pernas endireitaram. Mas os joelhos ainda são tortinhos.

Eu poderia ter me apoiado em tudo isso pra nunca começar. Mas fiz o contrário : me servi de tudo isso pra justificar a necessidade de correr. Em momento algum, médico ou fisioterapeuta disseram a temida frase : “corrida nunca mais”. Nem esqui nunca mais. O que eles disseram foi : fortaleça a musculatura pra estabilizar e evitar lesões. E conheça o limite do seu corpo.

Limite é aquilo que passamos a vida inteira testando, e o auge dos testes acontece na adolescência, mais definida pelos comportamentos do que pela idade cronológica do cidadão. Testamos principalmente os limites dos outros na adolescência, por isso também dizemos aborrecente : por vezes trata-se de saber até onde podemos perturbar alguém, precisamos de pontos de referência. Mas quando passa-se desta fase, trata-se de outros limites a estabelecer e testar. São nossos próprios limites que nos norteiam. E o meu maior limite é minha preguiça. Foi ela quem me empurrou pra corrida, por mais paradoxal que possa parecer.

Treinando no inverno: touca, máscara, calça polaire, casaco, meias de esqui. 

Fui dessas alunas que fugiam das aulas de educação física como gato foge de banho. Quando cheguei ao último ano do colégio, me empenhei nas aulas. Talvez pra tentar compensar os anos de displicência. Talvez porque seria o derradeiro. Mal sabem meus professores que, enquanto amarro meus tênis, penso neles. O gosto pelo esporte talvez não tenha sido despertado imediatemente naquela época, mas a semente foi plantada ali, certamente.

A corrida representa, pra mim, além dos benefícios da prática de uma atividade física, uma excelente válvula de escape de tensões, uma forma de fazer as idéias circularem e tomarem forma. Metade dos argumentos que apresentei nos meus trabalhos de faculdade aqui foram pensados enquanto eu corria. Ao mesmo tempo que o corpo trabalhava, a mente se libertava e as idéias fluem com facilidade.

Minha primeira participação em provas de corrida acabou acontecendo em Aix, há 3 anos, quando corri a prova de 7km feminino da cidade. Cheguei ao final querendo me inscrever pra meia maratona do ano seguinte, mas o joelho não deixou. E quando falei com minha médica sobre essa vontade, ela me aconselhou a meia maratona do Luberon, dizendo que seria uma excelente prova pra correr essa distância pela primeira vez, por tratar-se de um percurso praticamente todo plano, ao contrário do percurso de Aix. Além do mais, a prova acontece em um lugar maravilhoso, como vou contei no post sobre o percurso da corrida.

Participei de outras provas com distâncias variadas : os 11km de Plan de Campagne em 2012, os 10km de Aix e os 14km de Carro-Carry, no fim de semana anterior à meia maratona. Os treinos pras esta prova começaram há 3 meses. O livro que usei como referência foi indicado por uma colega canadense que disputou a prova há 3 anos, e é meu livro de cabeceira desde então (Running, do canadense John Stanton, fundador da Running Room. No site é possível montar o treino em função da distância desejada, mas usei só o livro mesmo). Durante um treino longo, meu joelho doeu. E o medo de não conseguir correr a distância pra qual treinava há mais de dois meses me invadiu. Abrimos mão de ir pra Munique, no último fim de semana da Oktoberfest, porque seria o dia da corrida. Seria muita falta de sorte não poder participar faltando tão pouco. Mas o joelho ficou quieto. Fiz todos os exercícios da fisioterapia, religiosamente, com uma disciplina que me surpreendeu. Porque sou, sim, muito preguiçosa.

Daqui saiu meu treino de 18 semanas pra correr os 21,1km no Luberon

No dia D, acordei cedo, fiz meus exercícios, me preparei, e meia hora antes da largada estava lá. Mas não fui sozinha. Aliás, não treinei sozinha. Os amigos encorajaram, mandaram mensagens antes da prova. Apesar de correr 5 vezes por semana sozinha, tive o apoio incondicional do Bernardo que, apesar de não ser fã de corrida, me acompanhou em alguns treinos, me puxando pra correr mais ainda. E domingo ele acordou cedo comigo. Ele poderia ter embarcado pra Munique. Ele poderia ter ficado dormindo. Mas lá estava ele, na largada me encorajando.

Aos 18km, distância que fez o joelho doer no treino, fiquei apreensiva. Nada de dor. Nenhum incômodo. Bom, faltam 3km pra chegar. Nos 20km, mandei uma mensagem pro Bernardo avisando que estava chegando. Quando avistei a torre onde estava a linha de chegada, mal acreditei : ali estava o marco de um desafio pessoal. Não são os 21km os mais difíceis, mas os 100 metros finais. É a hora que a gente vê a linha de chegada tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe. Porque ainda falta um pouquinho mais de esforço pra chegar ali. Quando vi as amigas de um clube pisando no tapete vermelho que marca a chegada, logo a minha frente, se dando as mãos pra cruzarem juntas a linha, eu pensei em todos os amigos que me encorajaram. Pensei nos meus professores de educação física. E no Bernardo. Os 100 metros finais são os mais longos. Mas foram os que percorri mais rápido. E a sensação de vencer um limite pessoal, atravessando a linha de chegada, é inexplicável. Indescritível. E imensamente realizadora.

3 Responses

  1. Frederico Quintão

    Que post incrivel! Tive um sentimento parecido na semana passada, quando participava do XTerra em Tiradentes/MG. E agora to me preparando pra (quase) meia-maratona da Pampulha, em Dezembro … esse post me faz pensar um monte, e por meus pensamentos no lugar sobre varias coisas. Obrigado por compartilhar isso com a gente!

  2. Natalia Itabayana

    A sensação é demais, né Frederico? De qual modalidade você participou? O percurso deve ter sido maravilhoso, vi algumas fotos e babei! Acho que quando o lugar é lindo, o esforço fica mais leve, foi isso que senti, porque tava contemplando a paisagem e quando assustei, tinha feito metade da distância!
    Prepare-se bem pra volta da Pampulha, tenho muita vontade de participar também! Como dizem os franceses, courage!

  3. Raquel

    Natalia, você é uma inspiração, sabia? Eu adoro ler o seu blog, principalmente esses que você fala mais dos desafios pessoais. Correr eu nunca animei muito, minha paixão sempre foi a bicicleta. Mas ultimamente a preguiça tem me vencido de lavada…
    E lembro também da sua saga do mestrado, pela qual eu vou passar tambem – e isso está particularmente forte agora que estou tentando fazer minha monografia…..
    Ai eu passo aqui e vejo que o que me falta é uma determinação como a sua. E também voce é um lembrete de como a vida pode nos reservar umas surpresas boas.
    é bom poder ser lembrada disso em certos momentos…..

    Parabens pela corrida! E "continue a nadar!" 🙂

    Abraços.

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