O caroço de abacate

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Determinadas coisas ficam marcadas na memória de forma tão viva que aguçam nosso desejo de persegui-las. Tive inúmeras coisas que tentei fazer e abandonei por não achar que o desejo não era lá tão forte assim, mas a mais recente é digna de relato, pois foi algo repleto de felizes coincidências. É a minha saga do caroço de abacate.

Nem sei mais há quanto tempo tento brotar um caroço de abacate, tentando driblar a natureza e a latitude. Foram várias tentativas infrutíferas – melhor vocábulo não há pro contexto. No ano de 2020, talvez no início do ano, ainda grávida de Bibi, tentei algumas vezes, em vão. Depois de me ver batalhando contra a natureza do abacate e tentando ludibriar sua essência, Bernardo finalmente tentou me dissuadir da ideia. Igualmente em vão.

Não me lembro bem ao certo quando peguei este caroço que é o personagem principal deste relato e o segurei em minhas mãos,agora vai, pesquisei, vou fazer direitinho o que ta escrito no site”. E fui lá, depositar toda minha fé que eu finalmente enganaria o caroço e ajudaria a natureza a se adaptar a uma latitude que não é favorável ao abacate. Se a tentativa fracassasse, os caroços seguintes seguiriam seu destino rumo à compostagem.

Cuidei desse caroço como se fosse meu quarto filho (tenho dois humanos e uma canina, vale lembrar). Todo dia testava um novo lugar pra que a luz pudesse banhar o caroço, um lugar que não fosse frio durante o inverno, que fosse o lugar perfeito nesse ambiente completamente inóspito à sua natureza tropical. Pois verdade seja dita, um caroço de abacate não brotaria por si só nessa lonjura, não se aventuraria por bandas mediterrâneas a se dizer que talvez seria uma boa ideia uma temporada na Riviera Francesa, à la Bardot.

A filha nasceu, mas nada do caroço brotar. O desejo de ver vida driblando incertezas e e um ambiente completamente desfavorável seguiu crescendo. O caroço do abacate virou um ponto de esperança fincado de três palitos de dente apoiados na borda de um copo com água. Era minha fuga da realidade massacrante da pandemia, dos encontros e abraços frustrados, de um parêntese que pena a se fechar – talvez não seja parêntese, talvez seja parágrafo, capítulo, volume.

Não sei ao certo datar quando o caroço finalmente deu sinais de que a vida brotaria de dentro dele. 2020 foi aquele ano que, pra mim, parou em 16 de março com o anúncio do confinamento na França. O tempo passou, e o caroço de abacate foi uma dessas ampulhetas que me mostraram todo dia isso. As outras foram as crianças crescendo, as roupas delas encolhendo a cada dia que se passava, durante aquela espiral incerta de dias intermináveis trancados em casa.

«  Esse abacate vai ser a nossa ampulheta pra mudarmos pra uma casa », brinquei com o marido, sem pretensão. Enquanto isso, nosso primeiro confinamento passou, o verão chegou com a ilusão de uma melhora na situação sanitária, mas guardando em suspenso os encontros e reencontros com a família do outro lado do Atlântico. E um esboço de rotina pré-pandêmica se manifestou com a retomada das escolas em setembro, depois da tentativa de duas semanas no fim de junho.

E foi seguindo esse início de ano em setembro, que marca o começo dos projetos e de muita coisa por aqui, que o caroço de abacate parecia pronto pra cumprir sua função de ampulheta de nova morada. Suas raízes se fizeram mais visíveis e longas, e eu seguia procurando o melhor lugar pra que ele tivesse a justa quantidade de luz e calor pra seguir seu ciclo.

E assim o caroço seguiu lentamente seu processo, iniciando de forma tímida a tentativa de brotar uma folha. Ficou nesse ensaio até o período natalino, com uma folha frustrada de primeira. Ao desmontar nossa árvore de natal, que cobria de forma não muito ostensiva a luz que era destinada ao caroço em desenvolvimento, os dois pequeninos brotos parece terem se alegrado de tal forma que não tardaram muito a esticar o pescoço e mostrar que estavam ali.

Mas foi o mês de janeiro de 2021 que marcou de vez a história do desenvolvimento do abacate. As hastes gêmeas começaram a ganhar em altura de forma mais rápida. Ironicamente, a neve caia e o abacate driblava esse evento meteorológico graças a seu abrigo que, ao que tudo indicava, fornecia luz e calor na medida suficiente pro seu ciclo seguir apesar da sua presença em terras mediterrâneas. Parecia que enfim eu tinha encontrado a boa combinação de fatores pra favorecer esse contorno às regras da natureza. Em janeiro também o abacate por fim cumpriu sua vocação atribuída pela minha frase despretensiosa dita meses atrás : mudou-se de um apartamento no 4o andar de um prédio (sem elevador) para uma casinha com jardim. É através da janela da cozinha que entra o sol que alimenta as folhas que começaram a aparecer quando nos mudamos de fato.

O caroço de abacate foi, simbolicamente e de forma pensada, a última planta que embarquei pra casa nova. Com cuidado coloquei o copo onde ele ficava num porta-copos do carro. Cada curva foi feita delicadamente. E do copo, o caroço de abacate foi pra uma garrafa, ganhando espaço pra suas raízes esticarem, e suas folhas aparecerem. Esse caroço foi nutrido com muito mais que luz, calor e água : foi um desejo vindo dos trópicos de ver a vida seguir seu curso, apesar da latitude desfavorável. Um pequeno exercício de paciência e persistência, paciência que é mais que necessária pra lidarmos com todas as incertezas que atravessamos. 

 

 

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