E como que num piscar de olhos, dez anos se passaram desde que chegamos em Aix-en-Provence. Sempre escrevo um post pessoal relembrando um pouco dessa nossa trajetória de migração, escolha de partir sem saber pra onde quando o trabalho decidiu enviar Bernardo pro exterior. Mudança pra fora da zona de conforto, pra longe das raízes.
O destino inicial seria a região de Chicago, mas tudo mudou depois de um tempo e acabamos desembarcando no sul da França. Eu pouco sabia sobre a região quando me mudei pra cá – pouco mesmo, acredito que só tinha ouvido falar dos sabões de Marselha pela minha avó materna. Nem tinha ideia de que existiam por aqui os famosos campos de lavanda.
Também pouco imaginava escrever um post comemorando uma década de vida aqui em circustâncias tão surreais como as que vivemos atualmente. Nem tenho adjetivo pra qualificar a situação, na verdade. Eu simplesmente me perguntava se nossa pequena iria chegar antes ou depois de completarmos 10 anos aqui, e ela decidiu chegar uns dias antes, o que foi um alívio.
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Alívio porque, devido ao confinamento que a cada semana se extende e se reforça, com restrições cada vez maiores, se ela tivesse chegado bem no termo, dificilmente eu teria a companhia do pai comigo. Alguns dias depois do nascimento dela soube que os pais só podem ficar na sala de parto, se sairem depois da maternidade não podem voltar nem pra visitar. Quando ela nasceu, as visitas estavam suspensas, somente o pai podia voltar para visitar.
Eu ainda gozei desse privilégio da visita do pai diariamente. E beneficiei de uma saída precoce da maternidade, 36 horas depois do parto estávamos em casa (o protocolo habitual para parto normal sem complicações é de mínimo de 3 a 4 dias de internação, cesárea entre 5 e 7 dias).
Meu maior medo era ser privada da companhia dele na sala de parto, ele que foi um apoio essencial pra que tudo se passasse quase como planejei – com exceção de termos ficado em casa pra que ela nascesse aqui, tivemos de mudar esse aspecto do plano e ir pra maternidade quando soubemos que a parteira que nos assistiria tinha ficado bloqueada no exterior por conta do fechamento das fronteiras. Foram meses planejando um parto em casa, pra no último minuto fazermos uma mudança nos planos, como tivemos de fazer tantas vezes ao longo desses dias de confinamento.
Vivemos uma hora depois da outra. Desde 14 de março trancados em casa, quando o presidente anunciou oficialmente a suspensão das aulas no dia 13 de março e o confinamento no dia 16 comecei a me preocupar e desejar que ela não tardasse (data estimada era 6 de abril). Eu queria ao mesmo tempo tê-la nos braços, protegê-la na barriga, ter o Bernardo comigo em casa e com Vic enquanto a gente se adaptava ao confinamento, sem que ele precisasse ir ao trabalho por não ter possibilidade de trabalho remoto. E ela veio, rapidinho chegou, trazendo aconchego nesses tempos tensos.
Nem fizemos comemoração de costume no 25 de março. Estávamos lidando com vários perrengues concomitantes, pensei na data, fiz uma pequena retrospectiva, agradeci por tudo, e mais do nunca me agarrei ao presente. É o que temos, é com ele que precisamos lidar, e não dá muito pra ficar curtindo nostalgia agora, vai ficar pra outra hora. Ou não vai ficar, talvez a hora seja de se agarrar ao presente e ta tudo bem.
Não sei se credito aos 10 anos fora ou simplesmente aos 10 anos vividos, suas experiências e tombos e recomeços uma necessidade de parar de olhar pra trás por um instante, de olhar pro agora, de lidar com o agora – algo extremamente difícil quando se sofre por antecipação, quando ansiedade é companheira constante.
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Cada um vai sentir o efeito desses tempos de restruturação do modo de vida de uma forma diferente. Tirar ou não algum benefício. Mudar o foco. Ou continuar na mesma, sei lá. Por minha parte, só quis deixar registrado aqui, como tenho feito ao longo de todos estes anos vividos na França, a realidade do que estamos vivendo neste momento. Um parêntese surreal, que tento preencher com vida que brota, com cuidado com os meus, que estão perto ou longe, de viver uma hora depois da outra, de suspender todos os planos por ora, e só planejar minimamente o menu do almoço ou jantar.
Temos de lidar com uma criança em ensino domiciliar compulsório, reestruturar diariamente a rotina pra que ele possa ter seus tempos de ócio respeitados, sem deixar de lado as atividades escolares, claramente mais leves pois a realidade já está deveras complicada. Tivemos de celebrar em casa o carnaval que seria na escola, dia 27 de março. Se fantasiou, a professora pediu fotos, mandou a música da festa pra qual eles prepararam coreografia. Filmamos, e como ele desejou, a irmã estava presente, mas os colegas estavam ausentes, o que não era programado.
Felizmente nesse mesmo dia a professora ligou pra saber notícias e dizer que recebeu da diretora a informação de que a bebê tinha nascido e que viu as fotos dos dois juntos. Conversou comigo sobre como está a organização do ensino em casa, disse que o ritmo de atividades pode ser leve, nada como é na escola mesmo, o objetivo é apenas manter o vínculo com o universo escolar. Enviou bastante material por email, conversou com ele também.
Antes das medidas de suspensão de aulas e confinamento as crianças já tinham sido devidamente esclarecidas na escola sobre o contexto sanitário, as professoras começaram a trabalhar para reduzir os contatos físicos, explicaram sobre “os micróbios” e ele chegou em casa falando do coronavírus, dos gestos para evitar transmissão, tudo que nunca pensei ouvir de uma criança de 4 anos e meio.
Enfim, nunca imaginei celebrar dez anos de vida na França vivendo um misto de cenários que figuram na literatura de ficção. A sensação que tenho hoje, depois de duas semanas de confinamento, é que estou num misto de “A caverna”, “Ensaio sobre a cegueira” (ambos de José Saramago) e “A peste”, de Albert Camus.
No “Ensaio” e em “A peste” as várias etapas vividas pelas sociedades e descritas com maestria correspondem ao que vivemos: um período de negação, um período de luto, seguido pela reorganização das relações e redefinição das formas de interação social.
“A caverna” já define uma outra etapa, que acredito seja algo sentido no pós-confinamento: aquele momento em que, ao saimos da caverna, teremos a visão ofuscada pela luz, fazendo com que o retorno ao que se vivia antes seja impossível. Depois que a ficha cair, acho que nos reorganizaremos de outra forma. Já o temos feito.
Acredito que, tal qual seja impossível voltar ao corpo de antes da gravidez, pelo simples fato daquele corpo não mais existir pois ele não tinha gerado uma vida, não voltaremos ao “mundo de antes” pois profundamente afetado por todas as mudanças decorrentes das contingências atuais impostas pela emergência sanitária da pandemia de coronavírus.
Tal qual na gravidez, podemos até ter um corpo mais magro depois graças à mudanças no estilo de vida, músculos mais fortalecidos por exercícios. Mas nunca, nunca mais se habita o corpo que não gerou e gestou a vida. Tal qual nunca mais habitaremos aquele mundo sem um perigo invisível que desorientou e reorganizou profundamente a forma como interagimos uns com os outros e nos organizamos em sociedade.
Fiquem bem. Cuidem dos seus. E obrigada por tirar um tempo pra ler esse desabafo.
Milci Faria Santana
Linda reflexão. Felicidades, saúde e proteção à sua família e benvinda a pequena?❤⚘
Daniela Fontes
Olá Natália!
Sou brasileira e penso em fazer um especialização ou mestrado na FR, vi alguns posts dizendo que no caso de ter o diploma superior de 2 anos é possível pedir a cidadania. Isso é realmente válido? Quais as regras exatas? Pouco achei sobre o assunto.
Conseguindo a cidadania neste conceito é possível extendê-la posteriormente aos filhos (que irão morar comigo durante o período do curso) e o cônjuge?
Natalia Itabayana
Ei Daniela!
Tenho um post completo sobre o processo de obtenção na nacionalidade francesa https://www.destinoprovence.com/como-conseguir-cidadania-francesa/
Gustavo Woltmann
Que história inspiradora! Desejo muita felicidade para vocês e que esse período de pandemia acabe logo.